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Os Consagrados

Frater A. A.

 

 

Faze o que tu queres há de ser tudo da Lei.

 

 

Os consagrados são as pessoas escolhidas entre tantas como vítimas para os rituais, cujo sangue será derramado e cuja vida é exigida. Quando o sangue não é mais derramado, quando se deixou de fazer sacrifício de vidas humanas, os consagrados passaram a serem os reclusos da vida profana. A divindade que antes clamava por sangue e por uma morte rápida, agora clama por uma morte lenta e silenciosa [nos claustros].

 

De uma forma ou de outra o consagrado é aquele quem doa a sua vida. A consagração não é um ato simples de ser realizado, quando comparamos com a maioria dos rituais de consagração que já são por demais trabalhosos. O ato em si é, portanto, muito mais complicado do que se possa imaginar. Estamos aqui diante da entrega de toda uma vida, de uma vida que está sendo doada, que será direcionada para um único objetivo. A morte é para tudo, que não seja aquele objetivo. O consagrado passa a ser, uma entidade especial, uma pessoa virgem, sagrada e intocável.

 

O sacrifício é sempre uma súplica final e desesperada a uma divindade protetora. Onde há a ameaça de um perigo, encontramos a “imolação” de uma vítima - nosso escolhido - seja ela humana ou animal. A ideia de um salvador [divino] que se sacrifica vem deste mesmo conceito, o que para qualquer dos inúmeros povos da antiguidade é uma aberração, pois um único sacrifício não poderia ser suficiente, mesmo que a vítima fosse o “filho” de um deus. Diversos são os perigos e diversos são aqueles que teem de serem sacrificados.

 

Devemos ter em mente que, quanto maior é o poder de uma divindade, maior deverá ser o sacrifício e maior o número de sacrificados. Divindades maiores e furiosas necessitam de uma quantidade maior de sangue; necessitam de um número maior de consagrados; necessitam de uma dedicação que ronda as portas da loucura e da morte: da insanidade espiritual.

 

Para o consagrado é uma honra ser a próxima vítima. Este se sente como um ser especial, mais próximo da divindade do que o restante dos homens. De certa maneira, o escolhido é até mais importante do que os sacerdotes que conduzem toda a ritualística. Para isto, ele não deixa de ser um “fanático” cujo laço entre ele e a divindade é o seu próprio corpo, seu sangue, sua carne e sua vida. No final das contas, ele se vê e passa a ser como o verdadeiro intermediário dos homens com o divino, necessitando de todos os cuidados dos outros homens, porque o seu sangue necessita estar purificado para o grande momento.

 

No entanto, quando o objetivo é não mais salvar apenas uma tribo ou um povo, mas todos, incluindo crentes e não crentes, surge então a necessidade de não mais sacrificar uma pessoa “consagrada”, mas a de sacrificar aquele que se julga ser o próprio “filho da divindade”. Para que isto possa acontecer, o sacrifício deste deve ser diversas vezes mais violenta, por causa de sua natureza divina. O “filho divino” por sua própria condição não humana, não apenas morre violentamente, mas deve renascer de sua própria violência, no intuito de confirmar seu status divino. Neste caso, o “filho divino” é ao mesmo tempo o sacrificado quanto o sacerdote no ritual. Enfim, podemos perceber que todo consagrado trás certa noção de que é divino, quase que um “filho”, uma pessoa íntima da divindade.

 

Historicamente temos, também, as vítimas que não podemos chamar de consagrados: como prisioneiros e escravos. O sacrifício destes não é necessariamente oferecido à divindade, mas como um ato de terror deliberado ou um ato de tentar buscar crédito junto ao divino. Em casos particulares, quando estes são oferecidos à divindade, representa uma condição extrema de medo e temor. Isto acontece em momentos particularmente perturbadores para suas civilizações em decadência.

 

Mas não importa, em todos os casos é necessário um sacrifício ultimal, quer seja da carne, quer seja de sangue. Para os antigos o sangue era a sede da alma e o derramamento do sangue era a entrega de uma alma em troca de algum favor pretendido. O sangue era visto como um elemento capaz de plasmar nos mundos “espirituais” os desejos dos homens, seus sonhos de felicidade, de prosperidade e de conforto. Quando o sacrifício passou a ser a da carne, os homens passaram a querer purificar a si mesmos, livrando-os das mazelas que a existência física provoca: a vida é um antro repleto de pecados e de sofrimentos que precisam ser renegados. Purificação aqui passou a ser realizado pela negação da existência e pela reclusão em lugares considerados consagrados. Os lugares sagrados são sempre afastados daquilo que pode desvirtuar a alma: mudaram-se os métodos, mas “o sangue ainda continuou a ser derramado”.

 

Derramar o sangue significa que estamos preparados para o serviço sagrado, que o nosso comprometimento é total com a divindade, com a nossa tribo ou com aquilo que almejamos. Aliás, é demonstrado que nada está acima daquilo pelo qual o sangue vermelho e fresco é derramado. Nosso amor é pelo objetivo de nossa morte. O consagrado sabe que assim sendo, ele encontrará a felicidade que a ele foi prometida pelo sacerdote.

 

Em algumas cerimônias tínhamos o sacrifício do próprio sacerdote que durante anos se havia preparado para aquele momento. Nestas cerimônias proibidas aos olhos de não iniciados, o sacerdote se imolava tanto em sangue para o divino, quanto em carne para a fertilidade da terra, para a salvação do povo... Neste caso, o sacerdote era um verdadeiro amante do terror, da dor, da morte e todo o seu prazer estava neste momento singular da existência, quando o rito atingia uma dimensão impensável para qualquer um, não iniciado. Seu sangue era exposto ao sol, dia e noite, até criaturas horrendas saíssem dele, enquanto que a sua carne era devorada pelo povo que sequer sabia o que estava comendo.

 

O consagrado deve estar preparado para os mais abomináveis rituais e estar preparado para sentir a vida se esvaindo lentamente de seu corpo. Ele não espera por menos, do que o calor do seu sangue e a dor de sua carne.

 

Amor é a lei, amor sob vontade.

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