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Sobre a Cabala

Sérgio Bronze

 

 

 

            Muito se tem escrito e falado da Cabala em nossos tempos, diversos livros podem ser encontrados nas livrarias, alguns de valor bem duvidoso, muitos escritos por rabis com uma visão estreita do que seja esta ciência, outros escritos por autores que desconhecem por completo o que se encontra por detrás do sistema, além daqueles que buscam detratar a Cabala por ela fugir dos parâmetros de uma determinada fé.

 

            Acredita-se comumente que a Cabala seja uma ciência dada por deus ao povo hebreu, mas isto não passa de uma simples manipulação religiosa, para dar àquele povo um carácter divino, como se todos os outros povos não o possuíssem. Percebemos ao longo da história que todos os povos atribuem a si alguma preferência divina, assim como o Brasil é um país abençoado por deus, como se os outros países não fossem. É atribuído ao povo o hebreu a categoria de serem o primeiro povo monoteísta, mas isto é também uma outra manipulação, pois por não terem qualquer outra tradição de importância, inventaram de que a preferência de um deus daria a eles algo de importância histórica.

 

Deixando os detalhes acima de lado, na verdade, a Cabala é uma ciência que tomou seus primeiros passos na pérsia, no período de Zoroastro, se é que não foi ele quem deu à ela suas primeiras estruturas. Pelo sistema como o zoroastrismo se estabeleceu na época de seu surgimento, a estrutura da Cabala se encaixa com uma incrível perfeição. Foi necessário dar uma estrutura para que as pessoas pudessem compreender a nova religião, que agrupava outras antigas religiões, seitas e cultos. O zoroastrismo surge em um período que aquela região era um aglomerado de outros cultos e para que o mesmo pudesse “recrutar” seguidores para a nova religião era necessário criar uma estrutura que pudesse mostrar que o novo deus Ahura Mazda era superior aos deuses anteriores e que esses deuses faziam parte do panteon da divindade. Assim, pode-se colocar, por exemplo, Mitra em um lugar de intermediário entre os homens e Ahura Mazda, tal qual Jesus, o Cristo, é para os cristãos, e como o principal guerreiro da divindade contra o mal, conhecido por Ahriman. Só mais tarde, o judaísmo se apropria desta ciência, dando uma roupagem própria, mais ocidentalizada.

 

            Se observarmos que até meados da Idade Moderna não se tinha chegado a um acordo sobre, por exemplo, o esquema da Árvore da Vida, fica fácil compreendermos que a Cabala ainda estava caminhando para o que ela é hoje e, consequentemente, ela ainda continua evoluindo. Uma tradição estagnada morre e deixa de ser tradição, ao contrário daquela que acompanha o desenvolvimento humano em todas as suas áreas. O esquema da Árvore da Vida é fundamental para se compreender o que a Cabala quer ensinar. Ora, se ela fosse algo divina e não fruto da imaginação e da criatividade humana, ela já seria dada perfeitamente montada e seus problemas resolvidos; tal como aconteceu com o sistema enoquiano revelado aos homens no século XVI. Utilizar a Cabala apenas para compreender os livros do Antigo Testamento é se prender: primeiro, nos dogmas de uma determinada religião; segundo, limitar uma ciência à um grupo de eleitos e com isto gerar manipulação de determinado conhecimento; terceiro, dar um carácter divino a algo que é inteiramente humano. Se esconder atrás de um hermetismo simbólico e numerológico é privar a humanidade de conhecer sua capacidade de evolução divina, quando ela se apresenta de maneira simples e contundente à todos.

 

            O sistema da Cabala está longe de ser perfeita, mas ao longo dos séculos praticantes do sistema se esforçam sinceramente no sentido de seu aprimoramento, incluindo novas idéias e filosofias, aproximando ainda mais a Cabala do caminho seguro que o sistema nos apresenta. Correções ao longo dos tempos são necessárias serem feitas, pois da evolução dela depende o caminho seguro dentro da própria iniciação espiritual. Obviamente que existem aqueles rabis que são contra toda e qualquer nova inclusão dentro do sistema, por acreditarem sinceramente, que um sistema dado por deus não pode ser interferido pelo homem. A dificuldade de aceitar novas idéias vai de certa forma contra a capacidade desses praticantes de compreenderem a Cabala como um sistema aberto à outras filosofias e crenças. Esquecem eles que o judaísmo como sistema codificado remonta da Idade Média e que muitas de suas crenças não passam de elegorias iniciáticas e não de fatos verídicos, como por exemplo a aventura de Moisés. Ora, através da Cabala se é capaz de compreender iniciaticamente o que se processa naquela epopéia.

 

            A Cabala evolui, por isso ela pode ser chamada de uma tradição. Ao evoluir ela pode trazer consigo todos os pensamentos dos mais diferentes momentos históricos e faz com que seus estudantes compreendam e utilizem aquilo que para eles é mais importante. Podemos aceitar ou não novas idéias, no entanto, precisamos conhecê-las para tirarmos nossas próprias conclusões e amadurecermos nossa inteligência e nosso senso crítico. Um dos objetivos da Cabala é fazer com que seu praticante pense, aprenda a analisar algo ou alguma idéia que já aparenta estar respondida ou que seja de resposta insolúvel. Ela tem por objetivo estimular a inteligência humana, quer seja através de sua filosofia ou através de cálculos e análises matemáticas. A meditação é crucial para a análise e na prática da Cabala.

 

            Tecnicamente, a Cabala se aprimora apartir do contato do homem com a divindade, mas daí dizer que a Cabala é um sistema dado por deus possui uma grande diferença. Ser inspirado por uma experiência vivencial é uma coisa enquanto que se obter algo diretamente d’Ele é outra completamente diferente. A necessidade de expressar uma experiência ou de dar um carácter didático à esta experiência mágico/mística é o que fez e o que faz a Cabala estar sempre em transformação. Se a Árvore da Vida representa o homem em sua queda e evolução, na figura de Adam Belial e de Adam Kadmon, resta a este homem aprimorar segundo sua própria experiência direta, i.e. gnose, a própria Árvore da Vida e os mundos que ela contêm. Apesar das experiências serem individuais, existem “reflexos” que são comuns a todos os homens em seu processo de retorno consciente nas sete primeiras Esferas. A mente humana evolui de uma forma muito semelhante em seus níveis mais inferiores pelo simples fato do Ego funcionar de maneira muito semelhante em todos os homens, mas isto é um assunto que deve ser tratado com mais tempo e cuidado. A grande diferença entre os homens passa a existir mais profundamente a partir da Esfera de Daath, a Esfera do Conhecimento ou o Grande Véu do Abismo, onde particularidades divinas começam a se sobressair de maneira mais contundente.

 

            A Cabala mais tradicional não admite ou tem dificuldade de aceitar a existência da Esfera de Daath, por não considerá-la como uma Esfera; por ela aparentar ser invisível ou por ela representar a morte da própria divindade, tal como isto é vendido na praça do mercado. Ela é invisível por estar em toda parte, pois sabemos que todas as Esferas abaixo dela possuem um caminho, i.e., um atalho, que leva à ela, assim sendo ela é o anverso das Esferas sob sua influência. Seu Conhecimento é o conhecimento (re-nascimento) da morte, o que nada tem haver com ressurreição. Sua existência forma a tríade, juntamente com Chokmah (Sabedoria) e Binah (Entendimento), da Luz que emana de Kether (Coroa), sendo que esta Luz é negra para os homens cegos. No entanto, para complicar um pouco mais, acredito que existem ainda, acima de Kether, mais duas Esferas de emanação, perfazendo trezes Esferas, antes que possamos atingir a Luz Ilimitada que emana de uma fonte que será eternamente desconhecida do homem (Ain). Um trabalho específico sobre o assunto está relativamente pronto e envolve novos conceitos que futuramente poderão ser aceitos ou não dentro da Cabala, por seus praticantes.

 

            Existem pelo menos quatro tipos de maneira de se estudar a Cabala, desde aquela interpretativa de textos sagrados até a prática direta com as Esferas da Árvore, passando pelo misticismo devocional e pela imposição da vontade do praticante. Em verdade, o que importa, é se ela é prática em nossa evolução espiritual ou se o seu estudo prático ou teórico não passa de uma mera curiosidade intelectual ou uma busca simples de poder.

 

            A grande maioria dos cabalistas acreditam que as letras hebraicas são sagradas e que foram dadas aos hebreus diretamente por deus, junto com a ciência cabalística, como dissemos anteriormente. Com certeza que as vinte e duas letras hebraicas, sem os pontos massoréticos obviamente, são de extrema importância para a desvelação do estudo cabalístico mais tradicional, mas daí dizer que os outros alfabetos não o sejam é uma outra restrição. Por exemplo, dentro do estudo da Árvore de treze Esferas, chamada por mim de Árvore do Esplendor de Deus, se utiliza as vinte e seis letras do alfabeto inglês como revelado pelo Livro Sagrado que sigo. A colocação destas letras na nova Árvore me foi mais fácil de realizar do que imaginava a princípio. Uma nova Gematria deve ser utilizada, mas parece que muitos estudantes ainda não chegaram a um acordo sobre a mesma, mas se faz necessário experimentar. A Gematria é um dos três estudos numerológicos utilizados pela Cabala para decifrar os chaves ocultas nos Livros Sagrados; das três é a menos complexa e, consequentemente, a mais usada. [1]

 

            Um detalhe importante sobre a Cabala é que seu estudo e prática não irá modificar no estudante o seu caráter, pode transformá-lo quase que na divindade, torná-lo um homem santo, mas não conseguirá transformar o caráter do mesmo. Isto quer dizer, que o que somos permanecerá, dominaremos até onde possível os estratos mais superficiais do caráter humano, mas nunca o transformaremos por completo ao ponto de nos tornarmos outra pessoa. Devemos compreender que a natureza divina é composta de todos os elementos, que os homens possam julgar como bons ou ruins. Em outras palavras, a Natureza humana, que se basea no Ego e na Personalidade, aquilo que foi moldado pelo código de DNA e na criação nos cinco primeiros anos de vida, permanecerão por toda a vida do estudante. A transformação que a iniciação oferece ajuda a controlar o que o praticante considera como um entrave ou o ajuda a reconhecer falhas, o que são coisas extremamente mais importantes no aprimoramento humano. Isto nos ensina que tanto o lado “bom” quanto o lado “mau” do homem fazem parte do Todo e que se estas coisas “existem” é por causa de um defeito do pensamento humano.

 

            A Cabala nos liberta dos grilhões das limitações humanas e nos aproxima da divindade, nos fazendo ter a experiência direta de que a divindade pode ser composta de todas essas coisas e mesmo assim continuar divina. O autoconhecimento não é condição primordial para o Conhecimento da divindade, quantos casos de “acidentes” ocorridos que fizeram com que pessoas comuns se deparassem frente a frente com a divindade e muitas delas sequer compreenderam com quem estiveram frente a frente. O Conhecimento do divino nada mais é do que um lapso desruptivo entre Ego, Personalidade e a Alma, a tríade que compõe o homem. Quando este lapso se torna constante, a Alma tende a se acostumar, se é que este seria o termo correto, com a presença do Espírito.

 

            Qualquer filosofia que se utiliza da Cabala pode ser um corruptor da própria Cabala. A mente humana está sempre pronta a fazer com que determinado conhecimento venha a justificar um determinado pensamento. No entanto, se estudarmos a Cabala longe dos conceitos mais enraizados de uma filosofia religiosa, mais clara ela se torna e mais livre ela nos tornará. Alguns me perguntariam: como se pode estudar a Cabala sem conhecer a filosofia hebraica ou, mesmo, cristã? Devemos entender que a Cabala enquanto uma ciência divina, pois ela nos aproxima daquele que comumente chamamos de deus, não deve e nem pode pertencer à esta ou àquela filosofia. Ela, enquanto ciência, foi desenvolvida para nos dar um caminho seguro na direção da divindade.

 

            Uma das finalidades da Cabala é nos dar as ferramentas necessárias para testar os ditos mundos espirituais, para que possamos saber com alguma certeza se determinado mundo ou acontecimento daquele mundo é verdadeiro ou uma ilusão. Através das cores, cheiros, formas, acontecimentos, nomes, números, animais, etc., se é possível saber onde nos encontramos e o que verdadeiramente se está querendo nos dizer. Qualquer falha devemos descartar tal experiência ou se temos alguma dúvida, ainda, poderemos ter como nos conectar novamente com aquele mundo experimentado. O crente, aquele suceptível ao misticismo e em acreditar em qualquer ato “sobrenatural”, corre um grave risco de se deixar enredar pelas suas próprias experiências fantasiosas. Isso que pode parecer muito belo aos olhos da humanidade, acabará por impedir uma concreta experiência mística que é o encontro do praticante Consigo mesmo. Deve-se observar tudo em mínimos detalhes, o que é o contrário de se agarrar em detalhes que de nada valem.

 

            A Magia se utiliza grandemente da Cabala e da Alquimia, em estágios diferentes. Isto quer dizer que o praticante de Magia precisa ter o apoio da ciência da Cabala, para moldar o seu censo crítico e analítico, para quando for se utilizar da arte da Alquimia, já esteja devidamente moldado espiritualmente para essa sublime etapa. A Cabala servirá de regulamentador para toda e qualquer prática que se venha a realizar, quer seja na magia, quer seja no misticismo. É o que manterá o praticante com o “pé no chão” quando lhe faltar qualquer outro tipo de parâmetro. Assim como qualquer ciência, ela deve ser utilizada para dar um norte para aquele que se utiliza dela. Ela é considerada como uma ciência, pois cada experiência e observação devem ser repetidas seguindo o mesmo método conseguido anteriormente. Se uma experiência, conseguida em um dia, não puder ser repetida, fora pequenas variantes, então a experiência não deve ser considerada válida.

 

       Sempre existem variantes em cada prática realizada, mas a essência da experiência deve ser a mesma. Existem estudantes que tentando entrar em um símbolo determinado experimentam experiências diferentes a cada dia. Isto deve ser considerado um erro, se na tal experiência não houver o fio condutor que leve à compreensão daquele determinado símbolo. A mente ao divagar gera imagens mentais e estas tendem iludir o estudante como sendo uma realidade. Encontrar um ser de uma Esfera que pertence a outra é um dos equívocos mais comuns que encontramos. Há pessoas que experimentam a experiência direta do Cristo na Esfera de Yesod. Alguns diriam que Yesod sofre influência direta de Tiphereth, a Esfera crística, daí o motivo de tal experiência, mas nesta Esfera não existe a experiência direta do Cristo, sendo um reflexo mental pessoal e coletivo daquilo que comumente se acredita como sendo o Cristo.

 

           Com certeza que seres de outras Esferas podem ter contato com o praticante, mesmo este estando em Esferas muito abaixo. Isto só ocorre quando existe uma Intimidade, i.e., uma Cumplicidade entre o Espírito e a Alma, que vai muito além deste nosso pequeno trabalho. Nestas ocasiões o praticante pode ser elevado às mais altas Esferas da Árvore da Vida, mas geralmente, quando se retorna ao corpo físico, muito pouco ou quase nada se consegue ser rememorado. Isto se deve à fraqueza do que se é chamado tecnicamente de Corpo de Luz, onde reside a verdadeira Consciência da Alma. Este Corpo de Luz necessita ser desenvolvido e seu desenvolvimento leva um determinado tempo para cada praticante. Devemos lembrar, que existem outros corpos que compõem o corpo físico e etérico, sendo que o Corpo de Luz e o físico são os mais importantes. Sem perseverança, quase que fanática, não se consegue fortalecer o Corpo de Luz com as práticas apropriadas: fanática, uma vez que o homem possui uma vontade fraca por não saber realmente o que ele quer. A medida que o Corpo de Luz se fortalece e a Consciência é exercitada nele, os estados alterados de consciência se tornam mais constantes, etc., etc...

 

 

 

[1] São eles: Gematria, Notaricon e Temurah.

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